QUANDO O AMOR IMPULSIONA O AUTOCONHECIMENTO
Daniele de Lima Mesquita
Aluna do curso de Formação em Psicanálise
Instituto IBRAPCHS – 2021
Incluo-me entre aqueles para quem o mito e o imaginário não representam uma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão, mas, sim, uma profunda realidade humana.
Edgar Morin
Na tela de Willian Bouguereau (“L’enlèvement de Psyché”, 1894), o rosto de Psiquê pende recostado no ombro de Eros, aconchegada, confiada na segurança de um menino. Quando foi a última vez em que *S se entregou assim? Que se deixou acolher assim sem se assustar com a presença do outro, sem ter a sensação de furto; o estremecimento involuntário?
Conheci *S em circunstâncias profissionais, começamos ao mesmo tempo na mesma empresa e fomos colegas de trabalho por quatro anos. Durante os anos em que trabalhamos juntas, almoçávamos ao menos uma vez por semana apenas nós duas, e mantínhamos ali uma conversa em que eu escutava mais do que falava. *S fazia do almoço a extensão de sua análise. Às bordas dos cinquenta anos, ela tinha tantas emoções confusas que uma hora de análise a cada quinze dias era muito pouco, por isso, repetia naqueles almoços as mesmas histórias semana após semana em meus ouvidos atentos. Era algo que lhe transbordava.
Mas, por enquanto, deixemos *S sentada à mesa do restaurante de esquina, amparando o rosto pendido em sua mão direita, com olhos perdidos no tempo, e vamos nos concentrar no mito de Eros e Psiquê.
“Eros e Psiqué”, para mim, é uma espécie de reencontro de tempos em tempos. Tempos sagrados de reencarne sem morte. Desfiamento de estruturas aparentemente rígidas, quase imutáveis. Tenho o sentimento de que a história de Eros e Psiquê deveria vir recomendada como um bálsamo de reflexão sobre determinadas angústias.
Sendo assim, bato à porta de Apuleio, poeta romano do século II d.C., para reavivar sua versão desse enlace. O mito de Eros e Psiqué. A linda moça que não se casava. Não importava o número de admiradores; ela não tinha pretendentes. A alma, significado do nome grego “psiqué”, tem suas reservas. Os critérios da vontade alheia não são suficientes para o exercício de seu domínio pelo outro. A alma, só a domina quem permite a ela entregar-se por si mesma.
Eros já conhecia Psiqué antes de fazer dela sua mulher. Atendera um dia ao pedido da mãe Afrodite que, enciumada pela sedução que a beleza da moça causava nos homens, pediu ao filho que fizesse a bela se apaixonar por uma criatura horrenda. Então, Eros foi até ela, e, quando a viu, não teve como encantá-la por outro, posto ter sido ele o encantado por ela. Distraído pela beleza da filha caçula do rei local, o rapaz esbarrou ele mesmo em uma de suas flechas e se enamorou. Ele a quis, contrariando a mãe, o primeiro amor de um menino como diria Freud (por outro lado, se pusermos em questão que ele a quis por ser bela como sua mãe, teríamos que empreender outro ensaio, não este…).
Psiquê era a filha mais moça do rei. Suas duas irmãs já estavam casadas e, apesar da grande formosura, beleza comparada à de Afrodite, nenhum homem, rei ou príncipe se dispunha a desposar Psiquê. Preocupado, o pai da moça procura o oráculo de Apolo para ser aconselhado e saber se há alguma maldição divina sobre a filha, e a resposta não alegra a família:
Sobre o rochedo lá no alto do monte, vá, rei, e expõe tua filha vestida a preceito para um casamento fúnebre. Não esperes um genro da raça humana, e sim um monstro cruel, feroz e venenoso, que alcança com suas asas muito além do azul do céu, que perturba tudo o que existe e a ferro e fogo faz tremer o próprio Zeus, aterroriza os deuses e enche de pavor as águas e as trevas do Estige
O Eros de Apuleio é o filho de Afrodite, a deusa do amor e da beleza. Ele não nasce com ela, como quer Platão em “O Banquete”, ele nasce dela. Não é filho da Pobreza e do Recurso, encantado pelo belo, revelando uma natureza ao mesmo tempo carente e pródiga. O amante de Psiqué, Apuleio toma-o de Aristófanes. Ele tem às costas asas e flechas. Todas as suas flechas ferem, afinal são armamentos, a diferença entre elas, entretanto, é o sentimento que a ferida uma vez efetuada provocará. Algumas provocam o amor, outras ferem provocando aversão. É o caráter dual do afeto. O flecheiro pode levar os humanos e os deuses à suprema felicidade e contentamento, ou à dor e à loucura. É um jovem, o mais belo, mas também é ameaçador, temido por todos. Suas flechas uma vez lançadas, muitas vezes por capricho, não raro causam a desgraça do ser flechado. Portanto, não a toa o oráculo se refere a ele como um “monstro cruel, feroz e venenoso”.
Para Sigmund Freud, Eros é a nossa força vital, a pulsão de vida em oposição à pulsão de morte. Eros está, portanto, presente no princípio de prazer que, em Além do Princípio de Prazer, publicado em 1920, é visto como derivando “do princípio de constância”, algo depreendido da hipótese apresentada logo de início na obra:
O princípio de prazer atende, pois, a uma economia de tensões, e advém de uma descarga de tensão. Essa hipótese é contestada por Alfredo Simonetti (2020), em simpósio comemorativo dos 100 anos da obra supra-citada, o professor universitário e psicanalista nos confronta com os prazeres advindos da manutenção de certa carga de tensão, como os que nos ocorrem durante o ato sexual. Esse prazer também é Eros que, nas palavras de Joël Schimidt, é “a virtude atrativa que leva as coisas a se juntarem e criar a vida”, é a pulsão de vida representada pela atração sexual.
Em O Mal-Estar na Civilização, obra escrita 1929, Freud nos fala mais precisamente sobre o princípio de prazer e a felicidade ansiada por todos nós como o sentido de estarmos vivos. Nos primeiros capítulos desta obra, a economia dessas variáveis é identificada da seguinte forma:
Algumas páginas adiante na mesma obra, Freud refere-se pontualmente ao amor diante dessa economia de tensões:
A primeira frase da citação dá conta adiantadamente da face dolorosa de Eros seguida da impossibilidade de evitar essa experiência diante da emergência da vida que pulsa na busca constante de satisfação. Eis que viver pressupõe uma forte dose de riscos.
Sendo assim, retornando ao oráculo que determina o futuro de Psiquê, temos em Apuleio que a jovem aceita o destino que lhe cabe e, desta forma, segue-se um cortejo fúnebre para deixar a donzela no alto do monte. Uma vez deixada no rochedo, a moça adormece e Zéfiro, a brisa suave a serviço dos deuses, carrega-a até a morada de Eros, na frente da qual ela acorda sem saber bem o que está acontecendo.
Tudo o que ela vê é riqueza e conforto. Ela entra no palácio e é recebida por vozes que começam a servi-la. Vozes, não pessoas ou espíritos ou seres, são apenas vozes. Ela é banhada, vestida, alimentada, servida de forma gentil e acolhedora por vozes. Ao anoitecer, Psiquê adormece no leito preparado para ela, e sente uma presença suave e amorosa que se apresenta como seu esposo. Eros não diz seu nome, não se dá a conhecer, não permite ser visto, porém toca a mulher com tamanha amorosidade que Psiquê se encanta pelo que não conhece, mas começa a saber, a saborear. Eros se faz desejo para Psiquê: o princípio de prazer a ser satisfeito noite após noite, desde que não seja conhecido, essa é a condição: ser sabido, não conhecido.
É possível amar o que não se conhece? Ou, àquilo que não se conhece, é consagrado apenas o desejo?
O amor não se revela de imediato, porque o “revelar”, tirar os véus que encobrem o que está oculto, é trazer para a luz em plenitude o que essencialmente não se permite esclarecer. Cada um ama a seu jeito, da forma como aprendeu desde o berço. Entretanto, o objeto amado precisa ser conhecido, mesmo que essencialmente saibamos que conhecemos apenas a projeção de nossos anseios sobre o outro, nunca o outro tal qual ele é – aliás, este, nem o próprio conhece, como nós, em princípio, não nos conhecemos de todo.
O amor é para os distraídos e para os corajosos, será? A coragem está apenas em se arriscar sem conhecer? Psiqué tem medo! Afinal ela quer ver a face de seu desejo, aquele cuja imagem desconhece, ainda que a forma física lhe habite todos os dias; ainda que sua energia lhe integre a vivência desde antes, bem antes de integrar o corpo. Ela ouve sua voz, sente-lhe a presença, mas reconhece a possibilidade de se deparar com um monstro a qualquer momento e dar-se conta de que sua vida esteve atrelada a um ser hediondo prestes a devorá-la. Então, surpreendida por aquele em quem confiou sem ver, poderia ser no fim feita em pedaços. O amor é traiçoeiro ou simplesmente instável? Quem nunca foi destruído pelo fim do amor?
No escuro e na ausência, Psiqué projeta no ser amado o que é somente dela: o receio, fruto de fantasias assombrosas despertas pela sugestão de suas irmãs. Convidadas por Psiquê a visitar o palácio onde ela mora com seu esposo, as irmãs, não podendo conhecer o amante da caçula, mas percebendo o quão bem está a moça recém casada, não aguentam a inveja e trazem de volta o destino anunciado pelo oráculo: se o esposo não se permite ver é porque deve ser um monstro odioso, uma serpente, uma ameaça à vida de Psiquê.
As irmãs retornam para suas casas, mas suas vozes ficam repercutindo em Psiquê. Essas vozes nada mais são do que a representação de seu passado; a representação da casa paterna. Lembremos que o rei-pai entregou a filha para ser desposada por um “monstro cruel, feroz e venenoso”, portanto, seria certo ela receber algo tão diferente disso? Será que ela merecia a felicidade que estava recebendo em seu leito noite após noite?
Reverberação da lei paterna, ou de uma consciência crítica que duvida de tudo todo o tempo na busca pelo conhecimento, as irmãs de Psiqué são a instância que cobra dela a felicidade desmedida que ela expressa em sua beleza cada vez mais plena. Não é possível ser tão feliz todo o tempo. Deve haver algo errado. Alertam as vozes de suas irmãs, despertando uma pulsão de conservação nada passiva, porém totalmente submissa àquelas vozes que ressonam mesmo depois que as irmãs vão embora. A pulsão de conservação impele ao retorno a um momento anterior ao enlace com Eros, um tempo já conhecido e que se mostrava seguro. Podemos interpretar essas vozes como o Supereu de Psiquê pressionando-a, compelindo-a a retornar ao rochedo em que foi deixada para a morte.Nesse trecho da história vale trazer uma citação de Freud sobre o Eu neurótico em análise, na obra Compêndio de Psicanálise, publicada postumamente em 1940:
Desta forma, encontramos Psiquê às vésperas de trazer à luz a face de Eros. Seu Eu está cindido entre as exigências do Supereu e do Isso. O Supereu, a princípio, se expressa indicando sua falta de mérito para a felicidade que aparentemente encontra, visto ter sido destinada a um monstro, e, portanto, deve conservar sua vida preparando-se para destruir aquele que se deita a seu lado, destruindo assim seu desejo. Por outro lado, o Isso, que pode ser representado pelas exigências de Eros em não ser conhecido, pede que Psiquê usufrua do prazer que lhe oferece sem procurar identificar e julgar suas formas. O Isso não se permite questionar. Psiquê não consegue ordenar seus pensamentos. Seus conflitos e dúvidas habitam um passado presentificado: seu esposo é um monstro, afinal ela foi entregue por seu pai para ser desposada por um monstro. O oráculo, o pai, o rei são representantes de ordens cristalizadas em seu interior.
O medo e a angústia, então, ganham vulto no pensamento de Psiqué, e seu monstro reatualizado, passa a ocupar cada segundo de seu dia. Podemos imaginar a respiração ofegante da moça, que sequer consegue ponderar segundo o fato de que as gentilezas e carícias, recebidas por ela de seu amante obscuro, não poderiam ser provenientes de uma criatura horrenda pronta a lhe fazer mal. Ela passa, pois, a viver na dependência desse “outro”, o monstro que só existe em sua mente. Ela teme por sua vida; teme perder-se. Ela angustia e se perde do destino.
Segundo Clifford Geertz, “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”. E o que vale para o homem, enquanto metonímia de humanidade, vale para o indivíduo em qualquer tempo. Eros, igualmente, projetou em Psiqué a indeterminação que só cabia a ele, levando sua amada a cometer o equívoco da desconfiança. Eros também temia. Seu medo era ter sua escolha e desobediência conhecidas por Afrodite, a mãe. Podemos, logo, depreender que ambos deviam obediência a uma lei originada no seio familiar, ambos eram orientados por um Supereu exigente. Mas cabia à Psiquê a pressão maior.
Assim, oscilando entre o medo, a angústia e a curiosidade, a jovem ilumina o rosto de Eros. Ela traz em uma das mãos a lâmpada alimentada de óleo, e, na outra, um punhal para defender-se de seu monstro. Porém, ao iluminar o amado, depara-se com tamanha beleza que, surpreendida, fere-se em uma das flechas que Eros deixa ao lado da cama e se apaixona pelo menino. Esse detalhe tem sua importância, segundo Lúcia Helena Galvão (2017), só é possível amar o que se conhece, ou seja, antes Psiquê vivia um encantamento pelo esposo, a partir do momento em que o vê, ela o ama. Ao mesmo tempo, ela deixa cair uma gota de óleo fervente na asa de seu amor. O amante acorda com a dor, vê o punhal nas mãos de Psiquê e reage abandonando-a: “não pode haver amor onde não há confiança!” São as palavras do deus ferido para sua amada. Palavras que bem poderiam servir a si mesmo, afinal, é ele quem primeiramente desconfia, não vendo em Psiqué a possível cumplicidade tão comum nas parcerias amorosas. Outro detalhe que não pode ser desconsiderado: o ferimento ocorre na asa de Eros. Eros, o desejo, que agora pode ser enfim considerado o amor de Psiquê, é ferido num símbolo de liberdade, a asa. Ele já não poderá voar livremente sem dor, ao menos enquanto não curar sua ferida.
Amor and Psyche, c.1636 - Peter Paul Rubens / Pisquê e Eros Adormecido, Peter Paul Rubens, 1636.
Psiquê não representa a alma imortal cristã; o elemento eterno fadado à insegurança entre o paraíso ou o inferno. Psiqué e seu amante antecedem a angústia dourada pelos pecados instalados nos homens por Paulo de Tarso, Tomás de Aquino e Agostinho. Ela é a mente, a consciência, no tempo do destino. E, se havia destino, e este era deliberado pelos deuses, então não deveria haver angústia. O bem e o mal eram consequência das vontades das divindades do Olimpo. Os homens deveriam apenas conformar-se, mantendo o equilíbrio de suas atitudes, pensamentos e emoções. Esse, ao menos, seria o caminho fora do “pathos”.
Os gregos consideravam qualquer atitude ou emoção extremadas fruto de um pensamento adoecido. Era a “paixão”, nome derivado do mesmo radical que em nossa língua deu “patologia” e “patético”. “Paixão” está originalmente relacionado a “pathos”, porque sentir demais é um sintoma, e Psiqué sente medo demais, permitindo que este sentimento guie suas ações. O medo se torna a “paixão” da amante de Eros, é sua perdição.
Segundo Lebrun
Gérard Lebrun, em ensaio intitulado “O conceito de Paixão”, disserta sobre as formas de ver e de viver as paixões, os sentimentos exacerbados. Lebrun lembra-nos que um indivíduo sábio não é o que vive sem paixões, mas o que aprende a viver com elas, adequando-as ao que se espera de um indivíduo ético
Entretanto, na plenitude de seus poucos anos, não se pode esperar que Psiqué saiba adequar suas atitudes, não há como manter o logos ajustado, se a única ética que conduz sua ação é aquela ditada pela cisão de seu Eu. Psiquê será, então, julgada, primeiramente por seu amante e depois pela deusa Afrodite. Seus juízes também estão inflamados, estão igualmente sob o domínio de paixões, mas são deuses e, aos deuses, tudo é permitido, conforme o poder que nós, míseros mortais, creditamos a eles. Sendo assim, nem Eros, o amante, e muito menos Afrodite, a sogra, considerará o medo da moça um sintoma consequente de ações e circunstâncias anteriores. Ao fim das contas, o que vale para aqueles, aos quais conferimos todo o poder que têm, é o que está dado.
Uma vez abandonada, Psiquê volta ao ponto inicial, o rochedo onde foi deixada por seu pai. Em desespero, ela percebe que retornar é impossível. Lembrando Heráclito: “Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.” O rio não é o mesmo rio, assim como Psiquê não é a mesma Psiquê. Ambos mudam para que o rio continue a ser um rio e Psiquê continue a ser Psiquê.
A permanente mudança é a única certeza, e condição de vida. Ao se dar conta da impossibilidade de retorno, a moça tenta se afogar num rio próximo, mas não consegue. O rio, metáfora da pulsão de conservação da vida, devolve a moça às margens, dizendo-lhe que ainda não é sua hora.
Determinada, então, a buscar seu amado Eros, Psiquê se entrega aos castigos de Afrodite, ignorando que seu amante está bem próximo, mas ainda não pode revê-la e está surdo para sua dor. A partir deste ponto, a história se desdobra em uma jornada de autoconhecimento. Psiquê se deixa fustigar por Afrodite e em seguida aceita suas provações. A cada prova, Psiquê aprende um pouco mais sobre si mesma e adianta-se em sua busca por Eros.
Porém esse poderá ser o tema para um outro ensaio. Voltemos ao início deste texto, agora com certa bagagem a mais proporcionada pelas reflexões feitas até aqui, vamos buscar *S exatamente na mesa em que a deixamos com seu olhar perdido no tempo.
*S casou-se pela primeira vez aos 16 anos, grávida de sua primeira filha. Seu marido tinha a mesma idade. Ambos começavam a vida com o apoio dos pais e sem problemas financeiros. Dez anos depois tiveram a segunda filha. Segundo ela, a relação era boa. Ela e o marido entendiam-se bem sexualmente, tinham um bom diálogo um com o outro, viajavam, amavam as filhas e estavam bem sucedidos em suas carreiras. Mas havia algo que não se encaixava. Ela sentia falta de sensações novas e não evitava buscá-las em casos passageiros com colegas de trabalho e clientes. Com o tempo, apesar de ainda gostar da companhia do marido, já não queria mais estar casada e tomou a iniciativa de romper com a relação.
*S contava que seu marido saiu de casa contrariado, ferido. Ele não queria se separar, mas foi embora assim mesmo. Ela, que já estava se relacionando com outro, viveu os primeiros dias de separação como um estranhamento. Ele fazia falta, mas ela entendia que essa sensação seria passageira, até que, ao assistir a um filme no cinema veio o gatilho. O filme parecia uma cópia do seu momento de vida. Ao final do filme, todos se levantaram e saíram, menos ela. Atordoada e sozinha na sala, *S caiu num choro compulsivo que não conseguia explicar à amiga a seu lado. Talvez, pelas mesmas razões de Psiquê, *S havia ferido seu amado.
O homem com o qual ela se relacionava naquele momento era casado, mas estava disposto a separar-se também. Era um homem atencioso, carinhoso que queria ter com ela uma relação mais séria. *S recusou. Procurou retomar o casamento, não conseguiu. Seu ex-marido exibia agora uma namorada, que ela considerava mais bonita, mais elegante, mais culta do que ela. *S entrou em depressão. Queria seu casamento de volta. Culpava-se por ter decidido pela separação. Pensava em morrer. A vida perdera a cor e ela o apetite, o brilho, a libido, o emprego. Sua mãe, com a qual passou a morar depois da separação, lembrava-lhe sempre que possível que tudo poderia ter sido diferente se ela não tivesse se separado. *S definhava silenciosamente como se uma pulsão de morte trabalhasse em suas vontades. Era um Eu cindido pela culpa presentificada nas cobranças de um Supereu reforçado pela fala de sua velha mãe em seus ouvidos.
Recorreu à terapia e aos amigos, contrariando a silenciosa pulsão de morte e agarrando-se à pulsão de vida. *S contava que, um ano e meio depois, ela percebeu, assistindo a um pôr de sol na ilha de Paquetá, que as cores de sua vida estavam voltando. Ela percebia certa melhora, apesar da tristeza diária que se instalava quase como uma companheira de viagem.
Conheceu um outro homem. Jovem, bonito, bem humorado que a amava e amava suas filhas. O sexo era bom, o diálogo era bom, o convívio parecia perfeito. Até sua mãe gostava dele. Era um rapaz preocupado com a casa, a família e o bem estar de todos. A relação durou alguns meses, até que ela rompeu com o moço. Conheceu outros. Homens interessantes. Relações rápidas. Nada significativo, até conhecer *B.
De acordo com a descrição feita por *S, *B era um homem mais velho, muito inteligente, sem nenhum apego a bens materiais. Tinha um filho com o qual nunca se relacionou, visitava o pai idoso com freqüência e falava da mãe com muita mágoa. As filhas de *S, bem como sua mãe, nunca gostaram de *B, porém, de acordo com suas próprias palavras, apesar do sexo ruim, ela o amava e queria muito ser amada por ele, só havia um problema: *B parecia não amar ninguém, nem a si mesmo, e a relação construía-se de forma abusiva.
Quando conheci *S, a relação com *B completava dez anos. Ela se lastimava todo o tempo. Ele nunca havia assumido a relação com ela publicamente, apesar de não ser casado. Em certa ocasião, ela foi alvo das risadas dos amigos de *B num bar ao se apresentar como namorada de *B e ser desmentida por ele na frente de todos. Segundo ele, nesta ocasião, ela seria no máximo um caso. Em outra ocasião, ele a acusou de deitar-se com todos os homens que ela encontrava em seu caminho e, depois de terem feito sexo em seu apartamento, puxou-a da cama pelo braço ainda nua e a empurrou porta a fora do apartamento jogando em seguida suas roupas e pertences como se fossem, ela e todas as coisas, um lixo qualquer. Entretanto, mesmo com todas as humilhações, ela voltava. Segurava-se num fio de esperança de que um dia ele a visse como sua mulher.
Semana após semana eram as mesmas histórias e uma tristeza que denunciava a presença ainda constante da melancolia depressiva do período pós separação. Ela repetia as histórias, repetia os abusos, repetia os caminhos, e afirmava que tudo o que queria era ter um companheiro bacana para dividir a vida. De minha parte, eu percebia que parecia haver um gozo extraído de uma punição autoaplicada. Um gozo que não permitia a ela enxergar que *B nunca seria esse companheiro. Esse gozo advindo dessa autoflagelação ficou ainda mais evidente no dia em que ela resolveu contar que, desde a separação, sonhava repetidamente com seu ex-marido. Em todos os sonhos, ele aparecia como se nunca tivessem se separado. Por vezes eram sonhos cheios de amorosidade. Outras vezes eram sonhos que traziam de volta a atmosfera familiar, as conversas, os afagos e as viagens.
Estava separada há mais de dez anos, tinha certeza de que não queria mais retomar o casamento com seu ex, mas esses sonhos constantes a intrigavam. Conversou com sua terapeuta, que disse não haver nenhuma importância nesses sonhos. A fala da terapeuta, reproduzida por *S me incomodou. À época eu estava em terapia com uma analista freudiana, que reconhecia a importância dos sonhos. Hoje, poucos anos depois desses almoços terem se esgotado, faço uma outra leitura da situação. Entendo *S como uma mulher oriunda de uma família de classe média conservadora que, diante do desgaste de uma relação conjugal iniciada muito cedo, teve o desejo de conhecer a vida por um outro viés, porém apenas não estava preparada para toda a carga que teria que suportar, e ultrapassar, sendo uma mulher separada com duas filhas, numa família conservadora que a havia criado para permanecer casada a qualquer custo.
*S entrou em depressão e definhou como a primeira forma de expiação da culpa por ter se separado, e a relação com *B era o desdobramento da continuação desse autoflagelo, fato que se comprova ao sabermos que *S não aceitou nenhum relacionamento posterior à separação que não fosse abusivo. *S queria um companheiro amoroso que fosse de fato bom para ela, mas não conseguia enxergá-lo nos pretendentes que se apresentavam com potencial para isso. Ela insistia em esperar isso de onde nunca poderia ter, na relação com *B. Os sonhos repetitivos com o ex-marido reforçavam o desejo dela por uma relação harmônica e o interdito de seu Supereu que continuava punindo-a pelo rompimento. Era como se, uma vez que ela rompeu com seu casamento, ela não merecia mais a felicidade de uma relação saudável.
*S entregava-se aos castigos de uma relação abusiva para expiar sua culpa, assim como Psiquê entregou-se às surras de Afrodite com o mesmo intuito. Entretanto, assim como Psiquê empreendeu sua jornada de autoconhecimento, impulsionada pelo desejo de ser perdoada por Eros e estar novamente nos braços de seu amado, num determinado momento, *S também recupera sua autoestima e retoma sua jornada. Porém, a continuidade dessa reflexão será tema de outro ensaio, já que este se encerra aqui.
BIBLIOGRAFIA:
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