Raphael Quintanilha Pereira
O presente trabalho tem o escopo de traçar pontos e contrapontos entre
o livro “Sociedade do Cansaço” e a teoria psicanalítica. A obra em questão foi
escrita pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, professor da Universidade de
Artes de Berlim, em 2010. Segundo os dados obtidos junto a confecção do
presente, seu trabalho sofre grande influência das ideias de Sigmund Freud,
Michael Foucault, Carl Schmitt entre outros.
O conteúdo exposto pelo professor de artes, ostenta a questão do
“sujeito de desempenho” que, conforme sua teoria, figura como o “senhor de
si”, se assim podemos dizer, responsável por exercer a função de explorado e
explorador, sendo recompensado com uma suposta sensação de liberdade.
Traz à tona a teoria da genealogia da inimizade, onde o inimigo do homem,
após reiterados processos morfológicos, vem mudando de forma e tamanho, o
que dificulta, de certo modo, a possibilidade de combatê-lo. Os adoecimentos
psíquicos da sociedade de desempenho, segundo o autor, são precisamente
as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal. E para ele, essa é a
circunstância que chancela o início do século XXI como o século das doenças
neuronais.
No que concerne as doenças neuronais, optamos em falar brevemente
sobre a depressão que, em 2022, segundo dados obtidos pela OMS –
Organização Mundial de Saúde, teria alcançado o número de 322 milhões de
pessoas no mundo. No Brasil são mais de 11 milhões de registros.
Outro ponto que será abordado no trabalho é a distinção entre a
Sociedade Disciplinar imposta por Foucault e a Sociedade de Desempenho
defendida pelo filósofo sul-coreano. Conforme professado por Byung-Chul Han,
a sociedade teria sofrido uma transformação em sua essência, onde o sujeito
de desempenho estaria livre da instância externa que o obriga a trabalhar ou
que poderia explorá-lo. O que lhe tornaria distinto do sujeito de obediência
inerente a Sociedade Disciplinar.
Buscou-se, ainda, entender a crítica feita pelo autor ao aparato psíquico
freudiano, oportunidade em que o mesmo afirma que a teoria do neurologista
Sociedade do Cansaço e a Genealogia da Inimizade
Segundo a teoria defendida no livro “Sociedade do Cansaço”, o começo
do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal.
Doenças neuronais como a depressão, transtorno de déficit de atenção com
síndrome de hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (TPL)
ou a síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo
do século.
O autor sul-coreano Byung-Chul Han utiliza como referência a teoria da
“genealogia da inimizade” de Baudrillard (Jean Baudrillan, sociólogo francês,
1929/2007) destacando que os “inimigos” dos seres humanos foram diminuindo
de tamanho no transcorrer da história, todavia, acentuou-se a dificuldade em
combate-los. Restou configurado um déficit no sistema imunológico humano
no que tange ao combate as doenças neuronais.
A “genealogia da inimizade”, criada pelo sociólogo francês, afirma que o
inimigo aparece (para o homem) num primeiro estágio como “lobo”. Ele é um
inimigo exterior que ataca e, contra o qual, nos defendemos, construindo
fortificações e muros. No próximo estágio, o inimigo toma forma de um “rato”. É
um inimigo que atua nos subterrâneos, que se combate através da higiene.
Num estágio seguinte, o do besouro (vírus), finalmente o inimigo toma a forma
viral: o quarto estágio toma as formas dos vírus, esses se movem praticamente
na quarta dimensão. É mais difícil defender-se do vírus, pois estão localizados
no coração do sistema. Surge um inimigo fantasma, que se estende sobre todo
o planeta, como um vírus, que em geral se infiltra e penetra em todas as fendas
do poder. O quarto estágio, segundo a interpretação de Byung-Chul Han,
seriam as doenças neuronais.
A seguir daremos um especial e breve tratamento a depressão em razão
de sua popularidade letal junto a população mundial.
Doenças Neuronais: a depressão
Para o sul-coreano, a depressão, como exemplo de uma das doenças
neuronais, se esquiva de todo e qualquer esquema imunológico. Ela irrompe no
momento em que o “sujeito de desempenho” não pode mais poder. Configura-
se, incialmente, como um cansaço de fazer e de poder.
No livro “Uma Biografia da Depressão”, escrito pelo psicanalista
Christian Dunker, encontramos a informação de que a certidão de batismo da
depressão moderna só será expedida definitivamente em 1854, apesar de
diversos registros que já davam conta de sua existência na Grécia antiga. O
termo foi empregado pelo psiquiatra Jean-Pierre Falret, a fim de descrever a
fase depressiva da loucura circular.
Ainda em relação a depressão, consignamos a declaração do vocalista
do grupo de heavy metal “Sepultra”, Andreas Kisser, durante uma entrevista
que fora publicada no site whiplash.net em 01/03/2023, onde o mesmo denota
que o velho bordão “sexo, drogas e rock n’ roll” está obsoleto. O roqueiro
arguiu o seguinte: “… o baterista do The Who, Keith Moon, tinha essa coisa de
ser super homem. Achava que era indestrutível e não é bem assim,
infelizmente, é a coisa da depressão…”. O músico britânico, citado por
Andreas, morreu dormindo em 1978, consequência de uma overdose do
medicamento que ele usava durante o tratamento contra o alcoolismo. O laudo
cadavérico apontou 32 pílulas de Heminevrin (“Clometiazol”, sedativo e
hipnótico) em seu organismo, 26 delas ainda não dissolvidas.
Ressaltamos que a entrevista foi prestada no ano corrente e o músico
faz referência a uma morte ocorrida na década de 70. Contudo, em 1930,
Freud já escrevia sobre o assunto, quando em “O Mal-Estar na Civilização”,
argumentou da seguinte forma:
Soma-se ainda um outro trecho:
Percebemos que o legado freudiano ainda faz muito sentido em nossa
realidade vigente.
Sociedade Disciplinar x Sociedade do Desempenho
Contrapondo Michel Foucault, o autor sul-coreano afirma que a
sociedade do século XXI não é mais a “sociedade disciplinar”, mas uma
“sociedade do desempenho”. Seus habitantes não se chamam mais sujeitos
de obediência, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de
si mesmos. É bem possível que as sociedades antigas fossem mais
repressivas que a atual, entretanto, hoje, não somos essencialmente livres. A
repressão cede lugar a depressão.
Segundo os ensinamentos do filósofo Michel Foucault, a “sociedade
disciplinar” teve seu início em meados do XVIII, figurando como uma espécie
de resposta aos fracassados ideais iluministas. Sua principal característica é a
vigilância do indivíduo em razão de seu potencial caráter infrativo. Após a
Revolução Francesa (1789 a 1799) e a constante luta pelos direitos sociais e
individuais, a sociedade obteve consideráveis conquistas, todavia,
concomitantemente, mitigou-se os ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade.
Achamos por bem trazer duas ponderações sobre o trecho acima, no
que concerne as premissas de liberdade, igualdade e fraternidade. A primeira,
defendia pelo escritor e cientista alemão, que viveu entre os anos de 1749 e
1832, Johann Goethe, afirma que os “legisladores ou revolucionários que
prometem simultaneamente a igualdade e a liberdade são sonhadores ou
charlatães”. A segunda, trazida por Yurval Noah Harari, no livro “Sapiens –
Uma Breve História Sobre a Humanidade”, sustenta que “garantir que cada
indivíduo seja livre para fazer o que desejar inevitavelmente compromete a
igualdade”.
A “Sociedade Disciplinar” tem dois métodos que culminam numa
estrutura: arquitetura que se transformará em arquétipo para um tipo de
sociedade. Nesse caso, o homem inventou o espaço de excelência disciplinar,
onde o olho do poder está sempre atento. O espaço da disciplina é recortado,
imóvel, fechado (hospitais, escolas, prisões, escritórios). Na outra face da
moeda, verifica-se uma série de recursos para o bom adestramento. A
disciplina não quer jamais reduzir as forças. Ela quer selecioná-las, torná-las
mais efetivas.
Entende-se que a “sociedade disciplinar” tem a capacidade de reduzir o
homem a condição de homo sacer, ou seja, alguém que foi excluído da
sociedade em virtude de um delito. Ele pode ser morto, sem que o autor seja
penalizado por isso.
Ainda em relação ao “homem de desempenho” (inserto na “sociedade de
desempenho”) Byung-Chul Han cita o sociólogo francês Alain Ehrenberg, para
quem a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-
moderno em ser ele mesmo. De acordo com o sociólogo parisiense o mal estar
na civilização (na francesa, pelo menos) se resume, hoje, à questão do
sofrimento psíquico e a ideia de que o laço social está rompendo com a
consequente transferência de responsabilidades e de inúmeras provas de
superação para o próprio indivíduo.
Segundo a ideia do autor do livro “A Sociedade do Cansaço”, o trabalho
exacerbado e a busca incessante pelo melhor e maior desempenho,
ocasionam ao sujeito a autoexploração. Mais nociva que a exploração infligida
pelo terceiro, pois se entrelaça com um pseudo sentimento de liberdade. É
ilusória a crença de que quanto mais ativos nos tornamos tanto mais livres nos
tornamos.
O verbo modal que define a “sociedade do desempenho” não é o “dever”
freudiano, mas o “poder hábil” (“konnen”, que traduzido do alemão quer dizer
“ser capaz de”, “poder”).
Crítica ao aparato psíquico freudiano
O filósofo sul-coreano, em sua obra, tece uma crítica ao patrono da
psicanálise, afirmando que o aparato psíquico freudiano, dotado de
mandamentos e proibições, é um aparato repressivo e impositivo. Está
estruturado sob os parâmetros de uma sociedade disciplinar, composta de
hospitais, asilos, presídios, quarteis e fábricas. Por isso, na opinião do autor, a
psicanálise freudiana só pode ser efetiva numa sociedade repressiva, que tem
como base de sua organização a negatividade das proibições. Para ele o
inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É um produto da
sociedade disciplinar repressiva da qual estamos nos afastando cada vez mais.
O psicanalista Christian Dunker, em uma publicação no seu canal do
Youtube, minimiza o posicionamento do filósofo coreano. Dentre as críticas
propostas por Dunker, o mesmo afirma que o autor utilizou apenas um dos
quatro paradigmas de Freud sobre o sofrimento para contornar a figura do
sujeito freudiano. Acrescenta, também, que não foi salientada a diferença
psicanalítica entre o “eu” e o “supereu”. Conclui, pelo exposto, que os
argumentos foram rasos, carentes de contundência interpretativa.
Conforme ensinamento de Immanuel Kant, todo homem tem uma
consciência moral e se vê observado, ameaçado por um juiz interno, temendo,
habitualmente, o peso de uma advertência. E essa violência que
intrinsecamente habita o âmago do indivíduo, não é algo necessariamente
criado por ele, mas está incorporada ao seu ser.
Ressalta-se que o filósofo alemão Kant, que viveu entre os anos de 1724
e 1804, teve seu trabalho forjado nas ideias de seus predecessores como
Nietzsche e Marx. Já Sigmund Freud, neurologista e psiquiatra austríaco, viveu
entre os anos de 1856 e 1939 e seu trabalho sofreu forte influência de
Nietzsche e do próprio Kant.
Quando Kant disserta sobre a presença de um “juiz interno”, podemos
fazer um intercâmbio interpretativo com a segunda tópica formulada por Freud
referente a estrutura psíquica. Para o psicanalista o superego se evidencia
como uma das instâncias da personalidade. O seu papel é assimilável ao de
um juiz ou de um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral,
na auto-observação, na formação de ideais, funções do superego. O superego
é definido como herdeiro do complexo de Édipo; constitui-se por interiorização
das exigências e das interdições parentais.
O sujeito moral que aceita também a dor e o sofrimento por causa da
moralidade – moralidade esta, que é esculpida sob a forja do superego – está
seguro de receber a gratificação. Ele mantém uma relação íntima com o outro
como instância da gratificação. Aqui não há crise de gratificação, pois Deus
não engana, e nele se pode confiar.
Na obra “Sociedade do Cansaço”, observa-se o argumento de que nas
doenças psíquicas de hoje em dia, tais como depressão, burnout, déficit de
atenção e síndrome de hiperatividade, ao contrário, não se vê a incidência do
viés repressivo e/ou denegativo. Vislumbra-se, sim, uma espécie de excesso
de positividade, denotando a mitigação da capacidade de dizer não.
Para Freud, o homem aculturado trocou uma parcela de possibilidade de
felicidade por uma parcela de segurança. Vindo a mitigar sua tendência a
agressividade, se contrapondo ao homem primordial que não conhecia
qualquer limitação aos seus impulsos. E, por essas abdicações, o neurologista
acredita que o homem tenha em seu âmago a sensação de infelicidade.
No que concerne a obstrução psíquica do sujeito em dizer “não”,
trazemos à tona os ensinamentos de Nietzsche, onde o mesmo afirma que “um
fazer soberano, que sabe dizer não, é mais ativo que qualquer hiperatividade,
que é um sintoma de esgotamento espiritual”. Ainda no que se refere a doutrina
do filósofo alemão, encontramos o posicionamento no sentido de que devemos
aprender a ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e a
escrever. Quando o mesmo se refere ao ato de aprender a ver (enxergar)
destaca: temos de aprender a não reagir imediatamente a um estímulo, mas
tomar controle dos instintos inibitórios, limitativos.
Conclusão
A primazia da psicanálise está na capacidade de escuta do analista, não
qualquer escuta, mas uma escuta qualificada. Esse é o principal objetivo
daquele que se propõe a complexa labuta psicanalítica. Dessa forma
trouxemos a voz de um autor, filósofo, estrangeiro – aqui nos referimos ao fato
do mesmo ser estranho a seara psicanalítica – e tivemos a oportunidade de
ouvi-lo.
A multidisciplinaridade da psicanálise conduz a uma vasta gama de
assuntos que com ela se relacionam. Ideias trazidas pelo autor sul-coreano que
teve o livro “Sociedade do Cansaço” publicado em 2010 são facilmente
relacionadas com ideias de Freud, publicadas no livro “O Mal-Estar na
Civilização” de 1930.
Não nos cabe afastar essa ou aquela ideia, seja ela nova ou antiga.
Entendemos que a melhor saída é ouvir todas. Buscar o conhecimento e
adequá-lo. Construir o discernimento de saber quando usá-lo e até mesmo
quando não usá-lo.
O homem moderno caminha para a introspecção social. As relações
estão se tornando cada vezes mais virtuais, rasas, líquidas como diria o
sociólogo Bauman. Pouco se quer ouvir o outro e a si mesmo. Precisamos
ouvir mais.
No livro “O palhaço e o psicanalista” escrito por Dunker e Claudio
Thebas, encontramos a seguinte afirmação: “encontros familiares,
funcionamentos institucionais de grupo ou de massa, além de plataformas
digitais, são particularmente vulneráveis ao fracasso da escuta”.
A busca pela capacidade de autossuficiência esta deixando o homem
cada vez mais dependente. Mas dependente de quê? Dependente da
capacidade de se ouvir, de se enxergar com os próprios olhos, de falar consigo
mesmo e de se determinar.
Referência Bibliográfica
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e
António Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução e notas de Saulo
Krieger. 1ª edição, 2020. São Paulo: Cienbook.
HAN, Byung- Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini.
2ª edição ampliada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
DUNKER, Christian. Uma biografia da depressão. São Paulo: Planeta, 2021.
DUNKER, Christian. THEBAS, Cláudi. O palhaço e o psicanalista: como
escutar os outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta, 2019.
https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/teoria-dos-juizos-kant.htm
http://www.portalgeobrasil.org/psico/mat/topica2.htm
https://www.youtube.com/watch?v=5Jj9rxd-SHI&feature=youtu.be (O Mal-estar
e a sociedade do cansaço)
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/saude/audio/2022-
06/aumenta-o-numero-de-casos-de-depressao-no-pais (Aumenta o número de
casos de depressão no país)
https://whiplash.net/materias/news_709/349660-sepultura.html (Andreas Kisser
diz que problema do heavy metal era droga e hoje em dia é a depressão)