Vania Aparecida Souza da Conceição1
Resumo
Este artigo pretende ratificar o significado do narcisismo e sua importância na constituição e
sobrevivência do sujeito, baseada em Freud e outros autores. Destaco a experiência frente à
dinâmica pulsional da libido, que perpassa todo ser humano, de forma a compreender o motivo
pelo qual retorna-se a esse estágio cotidianamente. E como o narcisismo constituído na relação
da criança com próprio corpo, como objeto de desejo e amor dos pais.
Palavras-chave: Narcisismo primário, narcisismo secundário, desenvolvimento do Eu
ABSTRACT
This article intends to ratify the meaning of narcissism and its importance in the constitution of
the subject, based on Freud and other authors. I highlight the experience facing the drive
dynamics of libido, which permeates every human being, in order to understand the reason why
this stage is returned daily. And as narcissism constituted in the child’s relationship with his
own body, as an object of desire and love for the parents.
Keywords: Primary narcissism, secondary narcissism, development of the Self
O termo narcisismo foi caracterizada pelos sexólogos até o fim do século XIX para
descrever a perversão sexual denominada pelo amor do indivíduo por si mesmo. Em Freud, o
termo foi encontrado pela primeira vez em 1910, no texto em Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade e, escreveu que eles “tomam a si mesmos como objetos sexuais” e, “partindo do
narcisismo, procuram rapazes semelhantes à sua própria pessoa, a quem querem amar tal como
sua mãe os amou”, tratando-os como invertidos já que o termo homossexual não era utilizado.
(Roudinesco, 1998, p.529).
Entretanto, Freud (1914) percebe que as caractericas de conduta narcísicas eram
encontradas também em outros sujeitos, não identificados como invertidos, faziam parte do
desenvolvimento sexual e regular do ser humano. Pressuponha que o narcisismo não era uma
perversão, mas um complemento libidinal do Eu próprio de todo ser humano.
A partir de 1914, Freud reformula sua concepção dualista entre as pulsões sexuais e
pulsões do ego. Enquanto a energia da pulsão sexual é a libido e seu objetivo é a satisfação, as
pulsões do ego colocariam sua energia (interesse) a serviço do ego, visando a auto conservação
do indivíduo. O conceito de narcisismo derrubou essa posição tornando claro o fato de que as
pulsões sexuais podiam retirar a libido investida nos objetos e fazê-la voltar sobre o próprio
ego. (Garcia-Roza, 1985).
Diante dessa nova construção, Freud identificou dois tipos de escolha objetal. O
primeiro, já escrito em 1905 em Três ensaios sobre a sexualidade, designado como pulsão
sexual, não foi modificado mas passou a ser denominado como escolha objetal de apoio, ou
seja, referindo-se as pessoas que mantem a alimentação, nutrição e proteção, sejam pais ou
cuidadores, tornando esses os primeiros objetos sexuais da criança. O segundo, parte das
observações e das pesquisas de Karl Abraham sobre estudo das psicoses, contribuíram para
revelar que o Eu poderia ser uma base de investimento libidinal como qualquer outro objeto.
Esse tipo de escolha objetal, chamada de escolha narcísica de objeto, se apresenta não na busca
de um objeto externo, mas na busca pela relação do indivíduo consigo mesmo. (Roudinesco,
1998).
É a partir dessa reconfiguração e da contribuição do conceito de narcisismo que o Eu
tomou um lugar de primeiro plano, deixando apenas a condição de mediador diante da realidade
externa, mas também se convertendo em objeto de amor e se tornando (…) um reservatório de
libido.
Para a psicanalise, no percurso do desenvolvimento infantil, a criança ao nascer não
tem consciência de si, sendo ela constituída à posteriori pelos investimentos libidinais dos pais.
O Eu não existe, então nesse momento, o que existe é uma libido voltada para si mesmo, que
se chama autoerotismo, caracterizado como um estado original da sexualidade infantil anterior
ao narcisismo, no qual a pulsão sexual, ligada a um órgão ou à excitação de uma zona erógena,
encontra satisfação sem recorrer um objeto externo (Garcia-Roza, 1985, p.99).
O termo libido, segundo Garcia-Roza (1985) é pulsão sexual, energia psíquica, que
tem por objetivo a satisfação, o prazer. É ela que impulsiona o sujeito para agir e estabelecer as
relações entre si. Independente do objeto, a libido busca se satisfazer, numa constante tentativa
de repetir o prazer experimentado e obtido inicialmente pelo seio materno.
Freud, inseriu a libido uma nova abordagem designando-a como uma manifestação da
pulsão sexual na vida psíquica e, por extensão, a sexualidade humana em geral e a infantil em
particular (…) fazendo dela um componente essencial da sexualidade como fonte do conflito
psíquico, para integrá-la na definição da pulsão e na relação de objeto (libido objetal) e, por
fim, para lhe encontrar uma identidade narcísica (a libido do eu)
Por conseguinte, o investimento libidinal torna-se primordial para o desenvolvimento
do Eu, por que é a partir do deslocamento da libido em si, que a criança vai se constituindo
como sujeito e, é a partir da castração, exercida no Complexo de Édipo, que ela, até então
acolhida, amada e desejada em sua plenitude, percebe que a mãe também busca outros objetos
além dela, gera nessa criança uma ferida do narcisismo primário.
A partir desse fato constitui-se um sucessor ideal que seja capaz de fazer-se amar pelo
outro, agradá-lo para reconquista-lo como objeto de desejo. A criança vai precisar agora buscar
novos objetos e para estes, tornar-se um objeto de desejo tal como era para mãe. No entanto,
isso só acontece mediante a satisfação de exigências do ideal do Eu.
A ação psíquica que instaura a formação Eu (representação que o sujeito tem de si
como imagem corporal unificada), tem sua libido deslocada nos objetos e passa ter seu
investimento libidinal voltado para o Eu. Esse processo é caracterizado pela libido do Eu como
seu objeto, isto é, esse estado de satisfação em si mesmo, Freud chamou de narcisismo primário.
Parte do desenvolvimento psíquico do sujeito no qual o Eu se desenvolve e, descreve a auto
conservação como umas das funções, pelas quais originam as primeiras satisfações sexuais
experimentadas pelas crianças.
No entanto, o narcisismo primário, só se mantém com o amor dos pais e é por ele
potencializado através da “onipotência que se cria no encontro entre narcisismo nascente do
bebê e o narcisismo renascente dos pais” (POULICHET, 1992, p.42). A entrega do amor
condicional dos pais, no fundo “tão infantil” nada mais é do que o narcisismo dos pais revisitado
nos filhos tão importante para esse desenvolvimento. A imagem que os pais criam seus filhos
a partir da perfeição e dos privilégios que foram obrigados a abandonar. (Garcia-Roza, 1985).
O narcisismo primário, os investimentos além de investidos no Eu, passam a serem
investidos nos objetos, e também, por certa organização da dinâmica pulsional, que é essencial
para a sobrevivência e estruturação da sua unidade. Além disso, embora o ponto crucial trazido
pelo conceito seja a formulação de que o Eu é tomado como objeto de investimento da pulsão
sexual, cabe destacar a apresentação do narcisismo primário como condição de possibilidade
para emergência das relações objetais. (Barbosa, 2021).
Compreendido também como um destino possível para a libido e um reservatório para
ela, o narcisismo se equipara a um ponto de partida sobre o qual vão se desenvolver todas as
relações de objeto e todos os processos de identificação e diferenciação do indivíduo em relação
ao outro. (Fulgêncio, 2013).
A construção do narcisismo primário é muito importante para a constituição do sujeito,
pois dependendo da forma como foi construído, vai criar modelos para as suas relações objetais
ao longo da vida.
Segundo Freud, (1914) A dinâmica libidinal cria um movimento constante que avança
para o Eu e para o objeto. Obstante lembrar que, tanto o Eu quanto o objeto são reservatórios
de libido e por conseguinte não há um equilíbrio entre eles, pois quanto mais se investe em um,
o outro se empobrece. Por esse motivo, chama-se estagio de enamoramento, “um transbordar
da libido do Eu para objeto”. Quem muito investe tem um abandono da própria personalidade.
Um empobrecimento do Eu em detrimento do investimento de objeto.
O desenvolvimento do Eu, melhor dizendo, seu amadurecimento, consiste num
distanciamento do narcisismo primário. Pressupõe, direcionar a libido para outro objeto que
não seja o próprio corpo. Toda essa dinâmica requer um empenho na possibilidade de
reconquistar o Eu ideal. Então, volta-se para a substituição para o Ideal do Eu (direcionamento
de objeto), o sujeito fica a todo momento tentando reviver esse narcisismo primário. O Eu ideal
dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real desfrutou na infância (Freud, 1914).
A constituição de um substituto para o Eu ideal se dá a partir da castração, onde a
criança descobre outros objetos de amor diferente da mãe ou cuidadores, com o objetivo de
atender as exigências dos outros objetos, que serão investidos de libido. Tais exigências
culturais, sociais e morais, se apresentam através da escola, instrutores, trabalho, igrejas,
instituições, (…). Apesar desse esforço, o Eu ideal não é abandonado, existe uma força pulsional
que se movimenta entre o Eu ideal e o Ideal de Eu, num retorno ao narcisismo primário numa
tentativa de encontrar o lugar de ser amado experimentado na infância.
Desta maneira, podemos observar que, quando o sujeito investe a libido no objeto e
não tem retorno dessa libido para si, o sujeito se frustra. Pois, todo o investimento requer uma
satisfação de uma demanda de origem pulsional. (Roudinesco, 1998). Quanto maior for a
frustração com objeto maior será o retorno da pulsão sobre si mesmo. Toda energia volta ao
seio materno, ou seja, retorna ao objeto que o satisfaz.
A insatisfação das demandas não atingidas pelo sujeito se apresenta como mola
propulsora entre o narcisismo primário (Eu ideal) e narcisismo secundário (Ideal de Eu). Toda
libido liberada pelo fracasso dos investimentos não fica nos objetos na fantasia, mas retorna ao
Eu, numa tentativa reviver toda preciosa perfeição vivida em sua infância. A não realização
desse ideal do Eu provoca frustração, culpa e temor de perder o amor dos pais.
Dessa maneira, o sujeito se apresenta incapaz de aceitar uma insatisfação. Decerto, não
querer abrir mão da perfeição narcísica vivida em sua infância numa tentativa de:
Para evitar tais sentimentos, a criança deverá ter desenvolvido satisfatoriamente nesse
período, ou seja, ter conseguido fazer o descolamento de seu primeiro objeto de amor, afim de
conseguir relacionar-se com os outros e consigo mesma. Considera-se também que o excesso
de investimentos na criança também pode acarretar sofrimentos tantos quanto a falta deles.
Se o distanciamento não acontecer, o sujeito pode na fase adulta fixar-se ao narcisismo
primário, onde sempre buscará nesse retorno os objetos que satisfaçam seus desejos, com base
no cumprimento de condições de amor infantis.
Entretanto, tais acontecimentos podem emanar alguns sofrimentos narcísicos, tais
como medo, angustia, vergonha, fobias, compulsões, inibições, culpas, etc. reflexos dos desejos
não realizados, ou seja, o fracasso de não conseguir atingir sua meta; em não desconstruir a
imagem que se cria de si mesmo perante o objeto. Aqui destaco um deles, a vergonha. Pode ser
apresentada em dois aspectos: medo de exposição ao outro e o medo de ser ignorado pelo outro.
Afirma Costa (2012) que,
O sujeito deseja ser reconhecido como objeto de investimento do outro, teme,
porém, não possuir os predicados que o outro, supostamente, desejaria que ele
tivesse. Resultado: nem quer ser visto nem deixar de ser visto.
Esse sofrimento narcísico muito nos diz da imagem que criamos de nos mesmo a partir
do olhar do outro. Nossa constituição criada a partir dos investimentos que o outro fez sobre
nós, e nisso não existe certo ou errado, podemos sim, ter criado uma imagem equivocada
daquilo que de fato nos representa, mas como decepcionar a nós e aos outros com uma imagem
que não corresponda a idealizada? Quais perdas e ganhos teremos com essa reconfiguração?
Esse conflito interno constante, entre o Eu ideal e o ideal de Eu, gera inúmeros afetos e
sofrimentos ao longa da vida.
O fato de não atender as expectativas e o cumprimento desse ideal, ou seja, nesse lugar
de perfeição narcísica, o sujeito libera a libido para si, tornando uma “consciência de culpa”.
Consciência pela culpa do medo dos pais, mais precisamente pela perda de seu amor; o lugar
dos pais foi substituído por outros companheiros e continuamente mantendo-se a culpa. (Freud,
1914).
Considerações finais
Portanto, este artigo abordou a importância da construção do narcisismo como tema
estrutural para psicanalise, bem como destacou o conflito essencial presente desde o início, de
um lado, a posição narcísica primitiva, e, por outro, a “necessidade” de um investimento para
o objeto, afim de assegurará a sobrevivência daquele que acabou de nascer. Se o todo
investimento libidinal se mantivesse restrito ao Eu ideal, impedindo o sujeito de se voltar para
o objeto vital, o sujeito seria conduzido à morte.
Passar pela experiência de frustração é desejar de imediato aquilo que antes vinha sem
ao menos ser solicitado e não ser deferido. Ao se deparar com uma nova realidade, o bebê
perceberá que há um descompasso entre seu desejo e sua realização. Ele vai aprender a esperar.
Se antes acreditava que detinha o poder até certo tempo, será obrigado, satisfatoriamente,
compreender uma nova realidade fora dele e que não mais será o centro das atenções
Somente mediante a renúncia da uma posição exclusivamente narcisista é que a vida
do sujeito, totalmente dependente do objeto, é assegurada. Para o sujeito inicia-se uma luta
constante, em que todos os esforços se voltarão para atender as exigências do Ideal de Eu, sem
nunca se distanciar do Eu ideal e com pretensões inatingíveis.
É importante lembrar que, não existe um abandono total de investimento do Eu ideal.
Esse sempre retorna, numa possibilidade de revisitar a imagem que o sujeito criou de si a partir
dos investimentos de seus pais ou daqueles que exerceram a função de cuidadores.
Assim como sujeitos social e de massa, Freud (1930), salienta que a vida social se
funda numa espécie de renúncia, ou, mais precisamente, no impedimento da satisfação
pulsional. Assim, o sujeito inserido na cultura, quando vetado a realização de seu desejo se
encontra nesse mal-estar, apesar das técnicas, subterfúgios, manobras ainda “resta” algo do
incontornável que somos incapazes de atingir.
- Formanda em Psicanálise (IBRAPCHS); Pós-graduação em Terapia de família (UCAM); Bacharel em Serviço
Social (UFF/RJ). E-mail: vaniamaxpel@hotmail.com ↩︎
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